Para o engenheiro, o mundo nunca está pronto

Discurso da cerimônia de formatura, março de 2012

Paulo Blikstein, patrono da 115ª. turma da Escola Politécnica da USP





Em 1998 eu estava aqui fazendo o discurso de formatura da minha turma. Uma formatura que era um pouco de uma farsa porque eu ainda tinha que passar de Física 3, e para quem fez Física 3, sabe que isso vale meia formatura. Em 98 eu disse que “formar-se na Poli é a maior emoção do mundo.” E hoje, 14 anos depois, eu digo que ser convidado para ser patrono da 115ª. turma da Escola Politécnica da USP é a maior honra desse mundo. Obrigado a vocês por essa oportunidade, obrigado, formandos, comissão de formatura, pais, Prof. José Roberto Cardoso, Prof. José Roberto Castilho Piqueira. E eu queria também fazer um agradecimento, em nome dos formandos, a todos os professores presentes que abriram as subs ou que arredondaram 4.9 para 5.0. Sem vocês metade desse auditório estaria vazio.

Nesses 14 anos, eu me lembro de ter tido aquele conhecido pesadelo do politécnico pelo menos 6 ou 7 vezes. Não uma, mas várias vezes, você vai acordar no meio da noite, suando frio, tendo sonhado que recebeu um telefonema da sessão de alunos, dizendo que houve um erro em uma das suas notas e vocês tem que voltar para refazer uma matéria. Então preparem-se, por que não vai ser Instituições do Direito. Vai ser Física IV, MecFlu, Cálculo Numérico.

Mas hoje eu não queria falar só de pesadelos, mas de sonho. E eu queria começar falando sobre tudo que mudou de 98 a 2012. Em 98, no meu discurso, eu perguntei para a minha turma: Porque nós decidimos fazer engenharia? E eu citei aquele exemplo de Newton, de quantas pessoas viram a maçã cair da árvore até que ele perguntasse “por quê?”. E disse que o maior fascínio da engenharia talvez seja exatamente esse, poder fazer o que nunca foi feito, inventar, construir. Mas lá em 98, tudo já parecia ter sido inventado, falar em reinventar o mundo e fazer o que nunca foi feito parecia conversa ingênua de discurso de formatura. A gente tinha tudo, computadores 386, monitores de fósforo verde, internet por linha discada, pagers, celulares Startac. Em 98 eu carregava um pager no cinto, as pessoas mandavam um número de telefone e eu corria para um orelhão. Era uma revolução, antes disso a minha mãe tinha que ligar para a secretária da Metal e deixar um recado, normalmente perguntando se eu tinha levado um casaco. Na metade de 98 eu comprei um celular que cabia no meu bolso, outra revolução. O futuro tinha finalmente chegado. Nesse mesmo ano saiu o Windows 98 prometido como o sistema operacional mais estável da história, que não travaria nunca. O mundo parecia perfeito, pronto, inventado. Dali em diante seriam só pequenos melhoramentos. Mas em agosto de 98 uma empresa formada por dois alunos de Stanford recebeu seu primeiro investimento, um modesto cheque de 100 mil dólares. Nesse mesmo ano, uma empresa quase falida lançava o primeiro computador colorido da história, com um design completamente diferente, numa tentativa desesperada de voltar a ser relevante. Essas empresas eram o Google e a Apple.

Nesse curto período de 14 anos, essas duas empresas valem mais do que o PIB de países inteiros, o Estados Unidos quebraram, assim como as inabaláveis GM e Ford, a China virou uma superpotência, em dezembro de 98 surgia o Euro, e hoje nem sabemos o que vai acontecer com ele, o Brasil é a quinta economia do mundo. Imagine um formando da minha turma de 98 que pensou – bom, é isso aí, o mundo está pronto, vou conseguir um emprego seguro e garantir um vida sem surpresas.

Formandos da turma de 2012 da Poli, deixe-me dar as más notícias: para o engenheiro, o mundo nunca está pronto. Porque quem faz o mundo somos nós, os engenheiros. E enquanto houver um engenheiro vivo nesse mundo, vai haver sempre um jeito de fazê-lo melhor.

Na década de 90, quando eu estava na Poli, o Brasil era muito diferente. Parecia uma crise sem fim, o um presidente havia morrido tragicamente, o outro ninguém queria, planos econômicos fracassados, os Menudos, hiperinflação, o impeachment. Naquela época engenheiro não podia ser engenheiro, não havia mercado, e era triste ter que abandonar a engenharia por falta de oportunidades.

Mas hoje estamos em um outro mundo, em um outro Brasil. Hoje, o engenheiro pode ser engenheiro, o Brasil precisa e quer engenheiros, e isso é um privilégio enorme que vocês têm.

Mas é difícil fazer um discurso para uma turma formada na Poli. Porque se eu falar para vocês que vocês devem acreditar no seus sonhos, eu tenho certeza que alguém vai pegar uma HP na plateia e começar a fazer a conta sobre o sonho, o possível benefício, a probabilidade de sucesso, projetar em 20 anos. Depois que você aprende o que é uma distribuição normal, é muito difícil convencer vocês a desacreditar das probabilidades e jogar-se em desafios duvidosos, arriscar, tentar coisas impossíveis.

Mas há um erro matemático nesse cálculo. Quando calculamos o valor esperado, multiplicamos a probabilidade do evento pelo possível benefício. O problema é muitas vezes com 20 e poucos anos a gente não sabe avaliar o beneficio. Ganhar dinheiro, ter uma vida confortável, isso tudo não vai ser tão difícil assim para vocês. Vocês não foram treinados para ganhar dinheiro ou para os melhores empregos, vocês foram treinados para serem aqueles que podem tomar os maiores riscos. Porque quem fez Poli não se abala. Quantos de vocês já tiraram zero em uma prova? Quantos de vocês estiveram na beira do desespero, quantos de vocês foram testados até os limites das suas forças? Se vocês chegaram até aqui, não há nada mais que vocês não possam fazer na vida. E se vocês podem enfrentar qualquer desafio, a questão fundamental é ter bom gosto para escolher os desafios. Porque os desafios que você escolhe definem quem você é.

Existe uma verdade muito incômoda em ser politécnico. Eu não sei se vocês vão entender hoje, eu que eu não sei se eu vou conseguir explicar direito. Mas essa talvez seja a coisa mais importante que eu aprendi nesses anos. E essa incomoda verdade é que todas as desculpas para você não fazer exatamente o que você quer da vida são exatamente isso – desculpas. Vocês talvez achem que vocês têm problemas, restrições, impedimentos. Que isso ou aquilo é muito arriscado. Claro, há raras exceções. Mas vocês tem uma chance tão rara – a chance de fazer uma escolha. Pouca gente tem o luxo de escolher o que quer fazer da vida. Mas vocês têm – e como diz um amigo meu, a não ser por cirurgia e petição, o engenheiro pode fazer qualquer coisa.

Em 1996 eu escrevi um texto para o jornal dos alunos da Poli, chamado “A Escola dos Homens Tristes”, que falava da educação na Poli. E hoje, depois de passar os últimos 12 anos estudando educação, eu estou convencido de que temos todos os ingredientes para mudar a forma de se ensinar engenharia na nossa escola. Há iniciativas desse tipo vindas de todo lugar, da diretoria, da associação de antigos alunos, de professores, de alunos e ex-alunos. Eu entendo que queiramos um alto padrão de qualidade e eu entendo que devamos exigir muito dos alunos. Mas devemos exigir não só notas em provas, devemos exigir paixão pela engenharia, criatividade, habilidade de resolução de problemas, e isso não se pode ver em uma nota, em uma prova. Senhores professores, senhor diretor, vamos reinventar a cultura da Poli, uma escola que roube alunos da FEA, da FAU, e da ECA, que seja essa uma escola da paixão pela invenção, pela engenharia, dos homens e mulheres criadores.

O grande segredo e a grande descoberta das melhores empresas do vale do silício, como a Apple e o Google, é que os engenheiros de lá não desenham produtos para outros engenheiros, mas sim para pessoas normais. Por isso qualquer um sabe procurar no Google ou usar um iPhone. Então eu sugiro que usemos esse princípio para o design não de um tocador de música mas para o design de um país. Vocês, que são a elite intelectual desse país, não desenhem um país para vocês mesmos. Desenhem um país para os outros, para os que mais precisam, não para ajuda-los, não para dar esmola, não por caridade, mas para incluí-los, incluí-los no mundo do saber, da cultura, do consumo inteligente, da saúde, do bem estar. Em 98 eu disse para a minha turma que quando emprestamos o carro de um amigo, devolvemos com o tanque cheio. A sociedade deu a vocês o direito de cursar uma universidade pública. Sejam bem-agradecidos: devolvam muito mais.

Meus caros politécnicos, esse é o meu conselho final. A Poli, dentre seus defeitos e virtudes, é um lugar onde chegamos ao limite de nossas forças. Aqui somos testados até as últimas consequências e nossas virtudes e fraquezas aparecem sem disfarce. Vivam sempre no limite, vivam sempre na iminência de dar tudo errado, vivam cortejando o fracasso. Falhem, mas falhem brilhantemente. Errem, mas errem como grandeza. O mundo não é dividido entre perdedores e ganhadores, é dividido entre os que entendem que tudo na vida é um estado meta-estável entre uma coisa e a próxima, e os que pensam que o sucesso é uma coisa estática que se conquista.

Muita gente do Brasil vem me visitar em Stanford querendo implantar um vale do silício no Brasil. Eles vêm para Palo Alto, e perguntam, qual é o segredo, nos digam o que fazer para criar um vale do silício brasileiro. E eu digo para eles – vocês não precisam vir para Stanford para aprender a fazer o vale do silício brasileiro. Visitem as suas escolas de engenharia, as suas escolas secundárias, e notem todos esses jovens com o brilho da invenção e da criatividade nos olhos. O vale do silício brasileiro já existe. O vale do silício brasileiro são vocês.

Obrigado e boa sorte.