Discurso de formatura

Por Paulo Blikstein





(Aos formandos da Escola Politécnica da USP em 1998)

Excelentíssimo Sr. Governador do Estado de São Paulo, Dr. Mário Covas, representado pela Sra. Lila Covas e pelo Secretário da Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, Prof. Dr. Flávio Fava de Moraes; Excelentíssima Sra. Pró-Reitora de Graduação da USP, Professora Doutora Ada Pellegrini Grinover, Excelentíssimo Sr. Diretor da Escola Politécnica da USP, Prof. Dr. Antonio Marcos de Aguirra Massola, Ilustríssimo Paraninfo, Prof. Dr. José Sidnei Colombo Martini, ilustríssimos membros de mesa solene, senhores professores, senhores pais, Engenheirandos, caros convidados.

Porque nós decidimos fazer engenharia? Talvez esse seja um bom momento para nos lembrarmos. O que nos fascina na profissão de engenheiro? Nada melhor do que lembrar o pai da física clássica: afinal, quantos milhões de pessoas viram a maçã cair da árvore antes que Isaac Newton perguntasse “Por quê?”. Talvez o mais fascinante da profissão do engenheiro seja precisamente isso: perguntar os “porquês”, ir além do senso comum, fazer o que nunca foi feito, adquirir as ferramentas para reinventar o mundo.

Mas por que falar em mudanças, em novas invenções numa época em que tudo já parece estar pronto e inventado? Ora, basta citar a famosa frase do engenheiro-chefe dos correios da Inglaterra, no final do século passado, ao escrever uma carta ao rei desencorajando os investimentos em telefonia, com a seguinte justificativa:

“Os americanos precisam de telefones, os ingleses não. Nós temos um grande número de mensageiros em nosso país.”

Parece que a história mostrou que o Sr. William estava errado. Mas, mesmo hoje em dia, será que não há muitas pessoas que pensam da mesma forma? E se nós, engenheiros, não lutarmos por desenvolver tecnologia no Brasil, quem o fará? E como disseram nossos pais quando entramos na Poli, não somos nós que vamos construir o Brasil do futuro?

Mas… será que o engenheiro é mesmo um construtor? Vivemos tempos de mudanças vertiginosas, globalização, Internet, tecnologia, mas também de desemprego tecnológico, solidão via Internet e incerteza sem fronteiras. O engenheiro de hoje tem que ser diferente: antes de ser um construtor, deve ser um desconstrutor.

Não estranhem. Nossa grande tarefa é exatamente essa: desconstruir o mundo. Nossa função mais nobre não é apenas juntar tijolos ou transístores para construir prédios ou computadores. Nossa grande missão é desconstuir a realidade como a conhecemos, dissecá-la, desmembrá-la, virá-la do avesso. Para que servem então os cálculos e as físicas senão para que nos treinemos a desmontar a realidade, a não aceitá-la como nos apresentam, a lembrar sempre que não há verdade absoluta, a acreditar que há sempre uma forma melhor, ou simplemente diferente, de entender e de fazer as coisas?

Devemos desconstruir esse país. Comecemos por desmontar a sua injusta distribuição de renda, que coloca milhões de brasileiros abaixo da linha da miséria. Desconstruamos então o nosso arcaico sistema educacional, que considera o cérebro de nossos jovens como um recipiente para ser preenchido e não como uma tocha para ser incendiada. Vamos inverter o sinal da derivada de injustiça social, igualemos a zero a fome em nossas ruas, estimulemos a nucleação e o crescimento da solidariedade, construamos as estruturas e fundações de um novo Brasil, onde a esperança não exista só no limite, mas no plano da realidade.

Depois, é claro, teremos que reconstruir o mundo. E aí não bastará colocar em prática apenas o que aprendemos nas aulas.

Sim, porque ao engenheiro do próximo milênio não bastarão as exatas. O que precisamos, cada vez mais, é do engenheiro humano. Aquele que sabe tudo de física, mas lê sociologia e se interessa por arte, que raciocina rápido, mas tem sensibilidade social, que lidera, mas tem humildade para ser liderado também. Engana-se quem imagina que o engenheiro deva ser um autômato. Pois o grande poeta Manuel Bandeira não era politécnico? As exatas devem ser as nossas ferramentas, não a nossa única forma de pensamento.

Um dos maiores compositores franceses, Guy Béart, não por coincidência um engenheiro civil formado na melhor escola de engenharia da França, disse que, para ser feliz, o homem deve ter pequenos desejos cotidianos, que ele pode realizar, e um grande projeto, que o faz sonhar.

E nós perguntamos, nesse dia que é a realização do maior sonho de todos nós: quais serão os próximos? Qual é o grande projeto de cada um de nós? Ser executivo, ter filhos, ser professor, escrever um livro, ser cineasta, dançarina, fotógrafo, flautista. Quantos querem viajar pelo mundo, quem sonha com sua própria empresa, e, afinal, quem não sonha?

O engenheiro da Poli deve ser acima de tudo um sonhador, mas um sonhador que tem as ferramentas para colocar em prática os seus grandes projetos, um sonhador que sempre desafia o razoável e o normal, desconfia do senso comum, inquieto, revolucionário, vanguarda onde quer que esteja.

Não deixemos que o cotidiano, nessa nova fase de nossas vidas, mate todos esses sonhos. Não deixemos que os nossos projetos sejam vencidos pelas inevitáveis dificuldades da vida. Não nos acostumemos com uma vida “normal”, “convencional”, “segura”. Porque viver sem sonhar, sem desejar o impossível, sem acreditar nas coisas improváveis, sem lutar pelo que realmente queremos, é viver pela metade.

A Poli, dentre seus defeitos e virtudes, é um lugar onde chegamos ao limite de nossas forças. Aqui somos testados até as últimas conseqüências, lutamos vinte e quatro horas por dia pelos valiosos créditos, fazemos o impossível para não naufragar num oceano de cálculos, físicas, vigas, fluidos, elétrons e discordâncias. Aqui não há remédio: nossas virtudes e fraquezas aparecem sem disfarce. Mas depois de tantos obstáculos surgem seres humanos de excepcional qualidade. As dificuldades são só uma forma da natureza nos preparar para os grandes desafios.

Uma frase que se aplica muito bem a essa situação é a do dramaturgo britânico Bernard Shaw, o mesmo que atribui todo o progresso do mundo aos homens insensatos. “As pessoas estão sempre culpando as circunstâncias pelo que elas são. Eu não acredito em circunstâncias. As pessoas que dão certo na vida são aquelas que, quando acordam, procuram pelas circunstâncias que desejam. Se não as encontram, eles as criam.”. E deve ser exatamente esse o espírito politécnico.

Quando emprestamos o carro de um amigo, devolvemos com o tanque cheio. Quando pedimos um favor a alguém, sempre queremos retribuir um pouco melhor. A sociedade nos deu o direito de cursar uma universidade pública. Estamos em dívida com ela. Caros colegas, sejamos bem-agradecidos: vamos devolver muito mais. Que seja essa uma preocupação constante, uma obsessão: lembremos sempre que nosso grande impulso na vida veio de tantos jovens que nunca tiveram as mesmas chances que nós.

E são eles os mais sofridos, os esquecidos, os que as estatísticas oficiais deixam de lado. São eles os que mais precisam do nosso trabalho. Estaremos construindo o Brasil do século XXI, que seja um país onde a nossa indignação se levante sempre contra as desigualdades e onde a construção da cidadania não seja sempre adiada.

Se a Escola Politécnica forma bons engenheiros, temos certeza, seus alunos tem uma grande parcela de mérito: é porque, confinados em suas salas de aula, fazendo suas provas impossíveis, passando longas noites em claro, sacrificando tudo e todos, encontramos a raça mais lutadora que existe nesse mundo, daqueles que venceram a luta mais árdua: a batalha contra si mesmo. Mas ela não foi vencida de forma solitária. Essa vitória só foi possível com a ajuda, a orientação e o inestimável apoio de nossos professores e de nossos pais

E nós que vencemos juntos essa primeira e difícil batalha, não devemos nos preocupar. Mesmo com os recentes avanços da Ciência, como a engenharia genética ou a inteligência artificial, que prometem mudar o mundo do dia para a noite, não temos o que temer. E aí eu tomo a liberdade de citar uma frase do meu tio, Prof. Moriz Blikstein, que nos deixou no último domingo, dia 24, e que não pode estar nesse ginásio contemplando o olhar emocionado e corajoso de todos esses jovens. Ele sempre dizia que vivemos uma época perigosa, na qual o valor do ser humano é cada vez mais ameaçado, na qual a ideologia dominante quer colocar os valores humanos e a ética em segundo plano, na qual se quer explicar, modelar e controlar o homem. Se as máquinas substituirão os homens, se os valores materiais substituirão os humanos e se os computadores tomarão os lugares dos engenheiros, não sabemos ainda. Mas podemos torcer para que, por mais que a Ciência avance e que os computadores insistam em imitar cada vez melhor seus criadores, continuemos inexplicavelmente encantados ao olhar um amanhecer, imodeláveis diante da pessoa que amamos, incontroláveis frente ao desafio de viver, incorrigíveis, improváveis, inalcansáveis, assim, humanos, terrivelmente humanos.





Caros amigos, formar-se na Poli é a maior emoção do mundo. Parabéns, novos engenheiros de uma nova era.