A Escola dos Homens Tristes

Por Paulo Blikstein





Onde você vai estar quando o relógio bater meia noite e o próximo milênio chegar?

Na escola, quando estudamos história, aprendemos que primeiro houve a revolucionária civilização grega, depois o invencível império romano, em seguida o tempo de glória dos senhores feudais, então o de Portugal, da Espanha, da Inglaterra, dos Estados Unidos, do Japão... Enfim, grandes impérios e potências que alcançaram a glória e invariavelmente decaíram. As razões disso são estudadas pelos historiadores há décadas, mas entre elas duas são certas: a acomodação e a incapacidade de diagnosticar corretamente os problemas. E o que isso tudo tem com a nossa Poli? Consideremos um grande império feudal. Tem o seu rei, seus nobres, seus pequenos feudos, sua pequena política, suas guerras, lavoura, servos. É um país poderoso, seus nobres vivem bem e seu rei é feliz.

Um belo dia o rei e seus assessores, analisando os números da colheita, vêem que seus lucros estão caindo. O rei, furioso, pergunta aos seus assessores: de quem é a culpa?! Eles logo respondem: “Do povo, Majestade. Nosso povo é que trabalha pouco”. “Aumentem as taxas e as horas de trabalho”, diz o rei. Entretanto, como não havia comunicação entre o rei a população, ele desconhecia que seu povo trabalhava sem instrumentos adequados, sem infra-estrutura e sem motivação. Era até um milagre que, com condições tão ruins de trabalho, o império não tivesse ido à falência antes.

Os nobres, que deveriam administrar mais diretamente as terras, davam diagnósticos errados e, mesmo sem perceber, se eximiam de toda culpa. “A culpa não é nossa: é do nosso povo vagabundo” - diziam. “Mudem a jornada de trabalho!”, “Sejam mais severos nos castigos!” - exclamavam aos quatro cantos. Fizeram o rei aprovar inúmeras leis (sempre as mais óbvias) que iriam criar “um novo reino”, “um reino moderno”, “o reino do próximo século”. Mas, ano após ano a produção foi caindo, o povo foi indo embora para outros países, até que aquele grande império, outrora imbatível, se transformou em uma terra decadente, pobre e sobretudo triste.

Os erros dos reis e de seus nobres: se acomodaram com sua pomposa grandiosidade e errarem no diagnóstico, porque não tiveram coragem de fazer autocrítica e contrariar interesses de seus pares. Na verdade, eles deveriam é investir tempo e recursos em melhorar a infra-estrutura e seus próprios métodos arcaicos de produção. O povo, como sempre, era o menos culpado.

É claro que qualquer semelhança com a nossa Poli não terá sido mera coincidência. E vejamos: há quase uma década se tenta fazer a tão falada “modernização curricular” e parece que ela sempre parte de um pressuposto: o problema está no “povo”, que no caso são os alunos da Poli. Por uma questão de justiça, devemos dizer que muitos professores bem intencionados participaram das várias comissões de “modernização”. Entretanto, sempre a mesma proposta aparece: a Poli deve voltar a ser como há quarenta anos: período integral, curso seriado, opção de curso após o vestibular etc. Exigem até a criação de mais mecanismos burocráticos para complicar a vida do aluno, para que ele afinal “estude mais”. Segundo muitas pessoas na Poli, essas propostas são precondição para melhorar o ensino na Escola.

O erro: diagnóstico equivocado. O problema da escola não é a falta de dispositivos burocráticos para obrigar os alunos a estudarem. Temos isso de sobra. Dizer que os alunos da Poli não estudam é dizer que a elite intelectual do 2º grau do Brasil é composta por vagabundos. Ora, se o aluno da Poli não é estudioso, quem é? Os melhores alunos do país não estão aqui. Vamos ter que importar alunos bons de outros países? Se a Poli tem uma grande virtude, é a de reunir um excelente corpo discente. Nossa escola tem à disposição o melhor material humano possível para Engenharia.

O que acontece, e o que os nossos nobres não enxergam, é que o aluno entra na Poli motivado, sério, disposto a estudar, formar-se rapidamente e poder exercer sua profissão. Entretanto, desde o primeiro ano ele depara com um curso árido, estranho e desconexo, muitos professores sem experiência ou preocupação didática, índices de reprovação pornográficos (que em qualquer escola do mundo causariam pelo menos uma interpelação ao professor), disciplinas que sequer usam a mesma notação, pouca ou nenhuma preocupação com a adaptação do aluno à Poli e, principalmente, nada que lembre a profissão do Engenheiro. A justificativa oficial: não querem ser paternalistas. Mas entre não ser paternalista e jogar o aluno à sua própria sorte há uma grande diferença. E aí começa um círculo vicioso: o aluno não consegue acompanhar uma ou outra matéria, não tem orientação para estudar, desorganiza o seu currículo, perde a motivação e muitas vezes desiste. E estamos perdendo excelentes alunos para a FEA, ECA, GV e Unicamp. Não porque eles não possam ser bons engenheiros, mas porque o Poli, verdade seja dita, é um ambiente muito hostil.

É aceitável que uma escola de Engenharia seja um pouco hostil, com tantos cálculos e físicas. Ninguém propõe que sejamos um clube universitário. Mas estamos passando (e muito) dos limites. Cultivamos aqui uma verdadeira cultura de sadismo: quanto mais sofrer, mais se aprende e mais você estará preparado para a vida. Por conta disso, a Poli se tornou um ambiente insalubre, triste, onde as pessoas têm muito pouco prazer no que fazem. E como formar um engenheiro que sequer gosta de seu curso?

Os proponentes das “mudanças” talvez dirão que suas propostas são apenas um primeiro passo: depois virá a revisão real dos currículos, os novos métodos de ensino, a fiscalização dos maus docentes. É até possível que isso aconteça, mas tudo está sendo feito na ordem errada. Mudar o horário, criar novos cargos e mudar a opção de curso são mudanças vazias: em si, não melhoram nada. Na verdade, o horário da Escola não tem nada de errado e existem cargos (e liberdade para criá-los) de sobra. A opção de curso tem funcionado muito bem até agora e não é ela a causa de nossos problemas.

O que deveria ser feito então? Ora, exatamente aquilo que a Comissão de Atualização Curricular não fez: ter idéias novas, criativas. Quase todas foram como uma “volta ao passado”. O que há de novo, de surpreendente, de intrinsecamente importante nas propostas? Quase nada. E essa é a nossa maior decepção.

O documento apresentado pela CAC, como está, não resolve nossos problemas mais básicos. Não fala uma palavra sobre uma nova filosofia, um novo princípio ético para a Poli. “Isso está em estudo”, dirão eles. Mas isso tem que vir primeiro, e não na forma de belos textos, mas de ação! Com medo de ousar, a comissão reduziu suas propostas ao mais básico e genérico. Esqueceu também de dizer como viabilizar as suas propostas. Como acomodar 4000 alunos em período integral? Temos bibliotecas? Temos restaurante? Temos salas de aula? Não se sabe. Como será o “período integral”? Vamos prender o aluno na escola o dia todo? Em que horário ele vai estudar? E aprender inglês? E fazer um curso extracurricular na sua área? E fazer estágio, que é cada dia mais importante? Em que, concretamente, o período integral vai melhorar a qualidade global do engenheiro formado? Não se sabe. “Deixemos isso para depois”, eles vão dizer. Afinal, o importante agora é aprovar os princípios gerais. Errado: como aprovar uma fórmula que, de cara, já traz dezenas de contradições? Sem um estudo detalhado das conseqüências de todas essas propostas (como em qualquer projeto de Engenharia), será um irresponsável salto no escuro.

A posição de melhor escola de Engenharia do país não é um título vitalício. Se a Poli não voltar a se preocupar com os seus alunos, oferecendo um curso mais interessante e menos massacrante, é inevitável que as coisas comecem a decair. Vamos encarar a realidade: a Engenharia há tempos não é a carreira mais concorrida e o anti-marketing da Poli como fábrica de loucos está se espalhando rapidamente.

Sempre fomos vanguarda, e esse sempre foi o melhor marketing para a nossa escola. Agora, as coisas se inverteram: a Poli virou um lugar velho, engessado, acomodado nas glórias do passado. Se não acordarmos, teremos o mesmo fim de todos os impérios do passado: uma triste decadência.

Mas acordar não significa fazer mudanças de gabinete. Significa contrariar interesses de grupos poderosos, romper velhos mitos e ter novas idéias de como se deve ensinar engenharia. A aluno da Poli não pode permitir que ele seja, de novo, o primeiro e único prejudicado pelas “mudanças”. Com seriedade (como bons engenheirandos) devemos fazer nossas críticas e apresentar proposta concretas para melhorar nossa Escola. Mostremos que não adianta combater efeitos sem eliminar causas.

Não se trata de formar uma comissão para discutir o assunto, nem de criar rivalidade: estamos falando de autocrítica real e ação concreta, além de um profundo exame de consciência em todos nós. Se conseguirmos criar um pacto ético entre alunos e professores – o que é, afinal, o mais importante – é possível que a Poli não seja mais somente uma boa escola de Engenharia, mas o mais competente e vibrante curso universitário do Brasil.



(Maio de 1997)